Revista Devires v.03 n.01

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Devires, Belo Horizonte, v.3, n.1, p. 01-212, jan.-dez. 2006 – ISSN: 1679-8503

Sumário

Apresentação da edição – César Guimarães – p.04
A última dança: como ser espectador de Memory of the camps – Jean-Louis Comolli – p.08
O cinema depois de Auschwitz: os dilemas da representação do Holocausto – Adriana Kurtz – p. 46
Arroz amargo: neo-realismo, Moscou e Hollywood – Célia Tolentino – p.64
A semiologia selvagem de Pasolini – Adalberto Müller – p.88
O filme como vontade de representação – Maurício Lissovsky – p.106
Dear Doc: o documentário entre a carta e o ensaio fílmico – Consuelo Lins – p.114
Lost book found: uma cidade ao rés-do-chão – Cláudia Mesquita – p.132
Ensaios de uma imagem só – André Brasil – p.150
Comunidades por vir e imagens provisórias – Clarisse Alvarenga – p.166
“Eu, Divino Tserewahú, aprendi a valorizar minha cultura através do vídeo” – Cláudia Gonçalves – p.180
Lista de ilustrações e normas de publicação – p. 209

Apresentação da Edição

César Guimarães

L’image n’a pas d’autorité épistémique. Elle incarne la réalité d’un désir qu’elle n’a pas pour mission de combler, mais de réanimer sans fin.

Marie-José Mondzain, Le commerce des regards

Em entrevista publicada no número anterior da Devires, solicitamos ao cineasta Jean-Louis Comolli que comentasse a seguinte frase do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “Não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão, ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto) que institui o horizonte de um pensamento”. Indagado sobre como o cinema, ao criar seus blocos de movimento/duração (segundo a expressão de Deleuze), inaugura também o pensamento, o cineasta respondeu: “O invisível no cinema é o que, fora do campo, se articula de maneira aleatória com o visível do quadro, mas é, também, ao mesmo tempo, dentro do próprio quadro, aquilo que é ocultado de maneira aleatória pelo desejo do sujeito que olha”. *1

Entre o visível e o invisível, entre o já pensado e o impen- sável, entre o mundo filmado e o mundo projetado na tela, se situam as potências estéticas e políticas do cinema, na medida que a mise en scène do filme é objeto de um duplo investimento: por um lado, ela aparece publicamente para o corpo social em um espaço público; por outro, os recursos expressivos do filme afetam o corpo individual do espectador, solicitando tanto os sentidos quanto o desejo… É justamente em torno do dispositivo complexo das telas (em suas diversas formas) que hoje se redistribuem os poderes do visível e do invisível, como nota Marie-José Mondzain:

Toda recepção visual diante de uma tela acontece em uma espécie de atopia fugidia, o tempo da visão ou da projeção. Esse não-lugar situa-se no espaço social. É a partir dele que se organiza o espaço dos espectadores, seu lugar a uma distância adequada, mas na escuridão relativa que tende a abolir a distância real dos corpos em relação à tela e dos corpos espectadores entre eles. *2

Esse espaço coletivo que abriga simultaneamente a comuni- dade do espetáculo e a solidão da visão é tanto estético quanto político. É por isso que Giorgio Agamben pôde afirmar que hoje em dia a exposição (o aparecer, a visibilidade) da ver- dade e do rosto tornou-se o local por excelência da política, de tal modo que a vida social inteira surge como um campo de batalha no qual as tropas de choque são representadas pela mídia e as vítimas, por todos os povos da terra. *3

Com essa abertura, não pretendemos apresentar em tom de alarde ou de catástrofe um diagnóstico sombrio sobre o destino atual do cinema, mas tão-somente indicar de que maneira os filmes e o pensamento que eles criam prosseguem em meio às condições mais adversas na contemporaneidade. Ao propormos esta aliança entre o cinema e as humanidades (subtítulo de nossa revista), o que pretendemos é insistir na fórmula criada por Godard: o cinema é uma forma que pensa, e não um mero objeto de pensamento para outros saberes. O cinema não apenas pensa, como também, ao fazê-lo, afeta-nos pela intermediação de uma máquina que se coloca entre os corpos projetados na tela e os outros corpos, o dos espectadores, que, por sua vez, se projetarão naqueles. Essa experiência fundamental dos filmes foi reavivada mais uma vez por ocasião do seminário oferecido por Jean-Louis Comolli no âmbito da cátedra Humanidades e Artes do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat) da UFMG, que ocorreu no espaço do Cineclube da UFMG, na Escola de Belas Artes, de 24 de outubro a 27 de novembro de 2005. Como uma amostra significativa das muitas preocupações que animaram o seminário, abrimos este número da Devires com o texto da palestra que o teórico e cineasta dedicou ao documentário Memory of the camps.
Nesse seminário, a projeção de filmes de diferentes au- tores (Luis Buñuel, Pier Paolo Pasolini, Robert Kramer, Pedro Costa, Arnaud Despallières, Ginette Lavigne, Abbas Kiarostami, além de alguns do próprio Comolli), seguida do comentário do cineasta e da discussão com um público formado por pesquisadores de origem variada e com alunos da Pós-Graduação e da Graduação, levou-nos a prosseguir com a edição impressa da Devires, depois de termos cogi- tado transformá-la em uma publicação on-line (de produção menos onerosa e mais prática). Resistindo à virtualização crescente que conquista a maioria dos periódicos científicos em outros domínios, que encontraram um abrigo seguro nos portais na Internet, arriscamo-nos a sustentar o projeto editorial e gráfico da Devires. Para tanto, realizamos algumas modificações na dinâmica da revista e buscamos novas for- mas de apoio institucional no âmbito da UFMG, em especial junto à Pró-reitoria de Pós-Graduação.

A partir do próximo número, apoiada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, a revista será vinculada instituciona- lmente ao Mestrado em Antropologia e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação (Mestrado e Doutorado), o que reforçará seu caráter transdisciplinar e renovará sua inserção acadêmica, pois contaremos com um novo Conselho Editorial, ampliado pela participação de outros pesquisadores, vinculados prioritariamente ao campo da Antropologia Visual e da Comunicação. Uma outra mudança significativa é que a revista terá, a cada número, um dos- siê temático dedicado a um problema relevante para a sua linha editorial, acompanhado de um conjunto de artigos de tema livre, selecionados pelos pareceristas. Para definir a pertinência dos temas e a organização dos dossiês que guiarão os dois próximos números, planejamos uma jornada de discussões para outubro deste ano, que contará com a presença de alguns integrantes do novo Conselho Editorial e, em especial, com a contribuição de Ismail Xavier, que tem sido um interlocutor inestimável.
Com tais transformações, damos um passo decisivo para firmar a Devires no nosso cenário intelectual, consolidando-a como um meio criativo de promover a interlocução entre os múltiplos saberes voltados para a compreensão das dimensões sociais, políticas e estéticas da experiência cine- matográfica. Este novo número de passagem ou de transição materializa um duplo gesto: permanece fiel aos propósitos iniciais da revista e também já exibe os novos rumos por vir. Prova disso é o conjunto dos artigos selecionados: em sua diversidade de temas e de pontos de vista, e para além das caracterizações (muitas vezes simplificadoras) em torno da materialidade dos formatos e das divisões de gênero, eles testemunham como a escritura singular de cada obra re- escreve e reinventa a potência sempre em aberto do cinema.

César Guimarães

Notas:
*1. COMOLLI, Jean-Louis. “Não pensar o outro, mas pensar que o outro me pensa”. Devires. Cinema e Humanidades. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, v. 2, n. 1, jan.-dez. 2004, p. 166-167.
*2. MONDZAIN, Marie-José. L’image peut- elle tuer? Paris: Bayard Éditions, 2002, p. 49.
*3. AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Payot & Rivages, 2002, p. 107.