Revista Devires v.13 n.2 – Dossiê Políticas do cinema e da fotografia: vestígios e memórias

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 13, n. 2, p. 01-244, jul/dez 2016 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

Sumário

Apresentação – Anna Karina Bartolomeu, Cláudia Mesquita e Maria Ines Dieuzeide – p.07

POLÍTICAS DO CINEMA E DA FOTOGRAFIA – Vestígios e memórias
O dizer do rosto na paisagem vestigial do Holocausto e o gesto político do olhar na montagem fotográfica – Ângela Marques e Frederico de Souza – p.14
A insistência da memória dos vencidos em La guerre est proche, de Claire Angelini – Fernando Pacheco – p.50
O que sobrevive na fotografia de guerra? – Katia Hallak Lombardi – p.70
Do vestígio ao avesso da imagem – Anna Karina Castanheira Bartolomeu – p.90
Elaborar a interrupção da história: montagem de arquivos em País Bárbaro, de Gianikian & Lucchi – Luís Felipe Flores – p.108
O estar vivo da fotografia: imagens que interpelam a guerra em papel descripto – Glaura Cardoso Vale – p.130
Queimar a memória: o cinema de Edgardo Aragón – Sylvia Beatriz Bezerra Furtado – p.152

Fora-de-campo
Apresentação – Naara Fontinele e Vitor Zan – p.172
Abordagem do Pensamento Tarahumara – Em busca dos vestígios de Eisenstein e Artaud – Raymonde Carrasco – p.178
Cinema é montagem – Régis Hebraud – p.220

Lista de pareceristas – p.242

Apresentação

Anna Karina Bartolomeu
Cláudia Mesquita
Maria Ines Dieuzeide

No número Vestígios e Memórias do dossiê “Políticas do Cinema e da Fotografia”, a Devires reúne reflexões produzidas em torno de obras nas quais a experiência histórica é revisitada. Algo que passou retorna através das imagens – por sua materialidade e/ou por sua porosidade ao trabalho da rememoração e da ficcionalização. Vestígios e memórias, acionados e articulados pela montagem, constroem narrativas em que passado e presente se encontram, trazendo até nós experiências soterradas, elaboradas a cada vez nos filmes, nas instalações, nos livros. Nos artigos aqui reunidos, os autores desenvolvem questões sobre as formas como pode se dar a retomada do passado e seus efeitos estéticos e políticos, especialmente quando consideramos que o sentido de tal retomada faz-se mais forte quanto mais nos leva a pensar criticamente o nosso presente.

No texto de abertura, “O dizer do rosto na paisagem vestigial do Holocausto e o gesto político do olhar na montagem fotográfica”, Ângela Marques e Frederico de Souza realizam um percurso teórico que recorre ao pensamento de autores que têm sido referências fundamentais para a discussão sobre uma política das imagens a partir da visibilidade conferida à história no presente, como Walter Benjamin, Georges Didi-Huberman e Jacques Rancière. O argumento central do artigo, entretanto, relaciona o conceito de rosto, de Emmanuel Levinas, ao gesto empreendido por Didi-Huberman no ensaio Cascas, que narra em imagens e palavras a sua busca por vestígios dos horrores ocorridos no complexo de Auschwitz-Birkenau. Para Levinas, o rosto não se confunde com a face humana, mas implica a expressão de um clamor, de uma demanda ética endereçada ao outro. Nessa perspectiva, a experiência de percorrer o espaço marcado por acontecimentos traumáticos vale-se de uma atitude de acolhimento e de escuta às vozes silenciadas que, no entanto, gritam através das ruínas e superfícies fotografadas por Didi- Huberman. Em sua deambulação, ele recusa os enquadramentos previsíveis do campo museificado, organizado para o consumo, e dirige seu olhar para rastros e cicatrizes sobreviventes – e que sobrevivem, de acordo com o ensaísta, por serem considerados “insignificantes, sem consequências”: as cascas das bétulas que testemunharam o extermínio, as marcas no chão, a profusão de flores no lugar onde antes eram os fossos de cremação. Conforme argumentam os autores do artigo, a dimensão sensível que resulta do trabalho da escrita e da montagem, realizados um ano depois da captura das imagens, não se resume ao visível, pois revelam o dizer do rosto das paisagens do campo de concentração, ressoam um clamor do passado que nos interpela e nos afeta no presente.

A problematização dos lugares de memória também é abordada no artigo de Fernando Tôrres Pacheco, “A insistência da memória dos vencidos em La guerre est proche, de Claire Angelini”. Assim como Didi-Huberman procurou escapar do roteiro preparado no espaço museificado de Auschwitz-Birkenau, a cineasta Claire Angelini viu-se motivada a realizar o registro das ruínas do Campo de Riversaltes, abrigo de estrangeiros indesejados pela França entre 1938 e 2007, quando soube que seria transformado em um memorial. Em sua análise do filme, o autor enfatiza o modo como os testemunhos de vidas “sem importância”, atravessadas pelo poder político que as confinou ao campo, são conjugados às imagens das ruínas, tomadas antes que seus rastros “reais” fossem apagados ou remanejados, paradoxalmente, em nome da preservação daquele lugar de memória. O cinema traria assim uma possibilidade distinta de trabalho com a memória – como argumenta a cineasta, citada no texto – por ser capaz de dar forma a uma narrativa que se oferece como rastro do que foi um lugar no aqui e agora da filmagem, tornando-se um arquivo em potencial. Para o autor, La guerre est proche funcionaria como um “disparador de signos do passado”; e as memórias produzidas podem agir no nosso presente ao evocar a condição dos migrantes dos nossos tempos, uma questão política aguda e atual.

A busca por vestígios deixados na paisagem em lugares marcados por acontecimentos traumáticos está ainda na base dos projetos fotográficos abordados no texto de Kátia Hallak Lombardi, “O que sobrevive na fotografia de guerra?”. Ao contrário do imediatismo e da dramatização do “momento decisivo” presentes nas imagens da guerra que frequentam os grandes jornais, esses trabalhos apostam no distanciamento para possibilitar a criação de um espaço de reflexão no retorno ao local dos conflitos. As oito obras fotográficas selecionadas têm como ponto em comum tomar o vestígio como elemento constitutivo, um “agente participativo e material estruturante da construção das imagens”. Como explica a autora, não há nas fotografias uma relação direta entre imagem e acontecimento: o longo intervalo de tempo entre o signo e seu referente os distancia; os vestígios nem sempre são legíveis de imediato. Longe dos clichês do fotojornalismo, o espectador precisa se deter diante de tais “antipaisagens” para perscrutá-las, para reconhecer nelas os vestígios que sobrevivem e que ensejam uma releitura da experiência histórica.

Um segundo conjunto de textos deste dossiê dedica-se a pensar os modos como diferentes obras retomam imagens de arquivo. Tais imagens são, elas mesmas, vestígios da história, enquanto ainda guardam os rastros de uma experiência a ser elaborada em cada trabalho.

Em “Do vestígio ao avesso da imagem”, Anna Karina Bartolomeu coloca lado a lado a instalação Imemorial (Rosangela Rennó,1994) e o filme 48 (Susana de Sousa Dias, 2009), ambos constituídos apenas por fotografias de identidade/identificação – a primeira, de trabalhadores da Novacap, empresa responsável pela construção de Brasília e, o segundo, de presos políticos da PIDE/DSG, a polícia política da ditadura portuguesa de Salazar. A função repressiva desses retratos é sublinhada na análise, que relaciona o conceito benjaminiano de vestígio ao modo como as fotografias são manejadas em cada obra, rompendo com a ordem do arquivo que lhes deu origem e deslocando a lógica indiciária própria de seu momento de produção, quando estavam a serviço das instituições de controle. Tomadas como “resíduos que sobreviveram ao encontro entre o poder e uma vida”, as imagens montadas terminam por revelar memórias subterrâneas recalcadas dos relatos oficiais da construção de Brasília ou deliberadamente escondidas pelo regime fascista. Da fotografia como vestígio e do vestígio na fotografia, a autora vai demonstrar como o cinema, ao combinar a fixidez da imagem fotográfica com o trabalho da memória realizado por testemunhas a partir desses rastros, nos dá acesso “a outros espaços e tempos, nas vizinhanças da imagem e no seu avesso”.

As operações de inversão do sentido primeiro de arquivos institucionais serão também abordadas no artigo de Luís Felipe Duarte Flores, “Elaborar a interrupção da história – Montagem de arquivos em País Bárbaro, de Gianikian & Lucchi”. No caso, trata-se de registros oficiais da colonização da África pela Itália, produzidos com fins de propaganda do regime fascista de Mussolini, que serão apropriados pelos cineastas italianos Yervant Gianikian e Ângela Ricci Lucchi, através de um método singular que combina a recuperação dos arquivos, muitas vezes já bastante deteriorados, com sua refilmagem e remontagem. Em sua análise, o autor mostrará como País Bárbaro opera uma amplificação dos vestígios da violência, inscritos nos detalhes das imagens, e realiza uma “organização dialética” dos materiais visuais e sonoros, incluindo cartelas de texto e a narração em off. Procedimentos que concorrem para a subversão dos discursos de dominação e do imaginário fascista. Como argumenta o artigo, tal subversão não se restringe à crítica ao passado, mas atinge a temporalidade do filme, que instaura “pontos de contato ou desvio entre futuro, passado e presente”, fazendo-nos reconhecer a continuidade do colonialismo e das guerras no nosso tempo.

No artigo “O estar vivo da fotografia: imagens que interpelam a guerra em papel descripto”, Glaura Cardoso Vale irá interrogar as fotografias trocadas entre o romancista português António Lobo Antunes e Maria José, sua esposa, durante a Guerra Colonial em Angola, entre 1971 e 1973. Publicadas no livro D’este viver aqui neste papel descripto, junto às cartas do casal que as acompanhava, as imagens aqui indicam, por um lado, um estar vivo, ao atestar a integridade física daquele exposto aos perigos da guerra; por outro lado, levam ao campo de batalha a esperança e a ternura das fotografias de um álbum de família fragmentado pela distância e pelo tempo. A aproximação às imagens dá-se não apenas através dos trechos das cartas que trazem comentários sobre o contexto em que foram tomadas, mas também indo à obra literária de Lobo Antunes, posterior àquele momento, e marcada pela sua experiência na guerra. Como argumenta a autora, são fotografias que contêm presente, futuro e passado, pois muito tempo pode se passar entre o seu envio e a chegada ao seu destino, quando, então, as coisas já se modificaram.

O conjunto de artigos dedicados ao tema deste número, Vestígios e Memórias, encerra-se com o texto de Beatriz Furtado, “Queimar a memória: o cinema de Edgardo Aragón”, que oferece uma perspectiva na qual a retomada de algo que passou prescinde do vestígio em sua dimensão material e explícita. Interessa à autora o momento em que, no cinema, o “documento (…) deixa de ser instrumento da história e passa a fundar o lugar da experiência estética”, como ocorre na obra do realizador mexicano, onde relatos e reminiscências de experiências vividas próximas ao seu núcleo familiar ou por ele próprio, relacionadas ao narcotráfico, são usados para a construção de cenas em filmes-performances. Não se trata de reconstituir situações e nem de um esforço de produzir mais documentos ou de apresentar fatos, mas de “fazer essa memória arder em imagens”, como argumenta a autora, em diálogo com o pensamento de Georges Didi-Huberman. A imagem queima pela memória e “o que resta é algo que não é a coisa (a história, o mundo, o vivido), mas farrapos da sua semelhança sem uma determinação temporal, histórica”, que lampejam para nós.

Ao final desta edição, na seção Fora-de-Campo, a Devires publica traduções inéditas de dois textos, ambos relacionados à obra da cineasta e professora de cinema e de filosofia Raymonde Carasco. Os dois textos voltam-se aos filmes de Carasco realizados a partir de suas viagens ao “país dos Tarahumaras”, no México, entre 1976 e 2001. O primeiro, “Abordagem do pensamento Tarahumara – Em busca dos vestígios de Eisenstein e Artaud”, de autoria da cineasta, foi escrito para o catálogo da exposição Antonin Artaud (2006-2007), e reúne um conjunto de reflexões acerca da produção de imagens junto aos Tarahumaras, do xamanismo descoberto com eles e sua incidência no cinema. O segundo, “Cinema é montagem”, tem a forma de notas feitas pelo seu parceiro Régis Hébraud para uma Master Class sobre Raymonde Carasco.