Revista Devires v.14 n.1 – Dossiê Políticas do cinema e da fotografia – Cinemas: formas políticas para tempo e espaço

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 14, n. 1, p. 01-201, jan/jun 2017 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

Sumário

Apresentação – Anna Karina Bartolomeu, Cláudia Mesquita e Maria Ines Dieuzeide – p.07

POLÍTICAS DO CINEMA E DA FOTOGRAFIA – Cinemas: formas políticas para tempo e espaço

Cenas de um cotidiano instável em três filmes documentários sobre o conflito Israel- Palestina – Thales Vilela Lelo – p.14
Vizinhanças, cantos e caminhos em A cidade é uma só? – Hannah Serrat de S. Santos – p.36
Potências do vazio: quando o personagem sai de cena – Silvia Boschi – p.60
Narrativa em devir: cinema feminista, política do dissenso e diferença em Que Horas ela Volta? – Fernanda Capibaribe Leite – p.86
Ponto estratégico e Serialismo em Von heute auf morgen (De hoje para amanhã, 1996) – Pedro Aspahan – p.110
O sentimento emancipado. Política de Milestones (Robert Kramer e John Douglas, 1975) – Jordi Carmona Hurtado – p.132
Filme-feitiço: notas sobre humanos e não humanos em Jaguar – Nilmar Barcelos – p.154
Canibalismo fraterno: o projeto estético-ideológico de Glauber Rocha a partir de seus escritos sobre Jean-Luc Godard  – Luiz Octavio Gracini Ancona – p.174

Pareceristas consultados – p.200

Apresentação

Anna Karina Bartolomeu
Cláudia Mesquita
Maria Ines Dieuzeide

Para encerrar este grande dossiê dedicado às “Políticas do Cinema e da Fotografia”, o terceiro número, que chamamos Cinemas: formas políticas para tempo e espaço, reúne um conjunto mais heterogêneo de textos, mobilizados em torno de filmes e autores específicos, passando por diferentes continentes e contextos históricos. Em comum, as obras que instigaram os autores ensejam análises voltadas para a busca de imagens e montagens que oferecem outras formas políticas para o mundo – documentado ou fabulado.

Um primeiro conjunto de textos percorre territórios em disputa e modos de enquadrá-lo. As diferentes formas de ocupar, esvaziar ou transbordar o quadro de cinema parecem ser encaradas como possibilidades de reocupar e modificar espaços de vida – sejam geográficos, como o território palestino ou a Ceilândia, sejam sociais, como o lugar da mulher nas relações de trabalho e classe no Brasil.

Assim, abre o número o artigo “Cenas de um cotidiano instável em três filmes documentários sobre o conflito Israel/ Palestina”, de Thales Vilela Lelo. Ele se volta para três documentários que recusam, em sua abordagem das vidas de palestinos sob ocupação israelense, “imagens de corpos despedaçados, construções em ruínas e vítimas desconsoladas que clamam por amparo mirando diretamente para as lentes da objetiva”. Os três filmes se aproximam, de maneiras diferentes, da rotina de famílias que vivem em regiões cortadas pelo “muro de segurança” construído por Israel. Ao buscar no cotidiano dos filmados os atos de resistência possível à ocupação, eles ensejam – na hipótese do autor – outras relações de espectatorialidade: “Afinal, são os entraves à possibilidade de manutenção das rotinas de vida que tornam mais explícitas as circunstâncias desiguais às quais os seres humanos estão submetidos – uma vez que os limites radicais da existência (guerras, calamidades e desastres) são em geral absolutamente outros para aqueles que não os vivenciam na carne”.

No artigo seguinte, “Vizinhanças, cantos e caminhos em A cidade é uma só?”, de Hannah Serrat, a autora investiga, por meio da análise cuidadosa de imagens e sons, como o filme de Adirley Queirós constrói espaço para as experiências dos moradores da Ceilândia. Como operação analítica, o artigo aproxima as imagens modernas do fotógrafo Marcel Gautherot aos enquadramentos contemporâneos de Queirós, convocando certa iconografia da capital federal para “operar entrecruzamentos entre os modos de aparição dos espaços de Brasília e a experiência histórico-social que ali toma forma”. Percebendo pontos de vista radicalmente distintos entre fotografia e cinema (ainda que a composição dos planos remeta a essa iconografia anterior), a autora discorre sobre como a elaboração testemunhal em cena, por meio de gestos e falas apanhados no espaço urbano vivido, trabalha com a reconfiguração do território periférico da capital federal.

Se Adirley Queirós investe nas formas de ocupação e apropriação dos espaços – através de corpos, vozes e cantos – pelos personagens moradores da Ceilândia, o terceiro artigo aponta caminhos na direção contrária: os enquadramentos esvaziados. Em “Potências do vazio: quando o personagem sai de cena”, a autora, Sílvia Boschi, analisa dois documentários brasileiros do fim dos anos 2000 – Uma encruzilhada aprazível (Ruy Vasconcelos, 2007) e Sábado à noite (Ivo Lopes Araújo, 2007) – que investem nas formas de aparição do “nada”. Por meio de uma investigação de planos, enquadramentos e montagens, o artigo demonstra como, cada um a seu modo, os filmes apostam na construção de um espaço esvaziado de corpos. Para a autora, esses documentários expressam um contraponto à proliferação de imagens e autoimagens, ao discurso do espetáculo, interessando- se pelas potências criadoras da “página em branco”.

Na leva de investigações em torno do cinema brasileiro contemporâneo, o artigo “Narrativa em devir: cinema feminista, política do dissenso e diferença em Que Horas ela Volta?” propõe uma análise do filme de Anna Muylaert. A autora, Fernanda Capibaribe Leite, busca as formas como as personagens femininas e as relações colocadas em cena podem remanejar o lugar ocupado pelas mulheres para construir no filme possibilidades de desvio das normas. A água da piscina aparece, no texto, como a imagem do extravasamento, do transbordamento dos lugares que atravessam as personagens de mãe e filha, Val e Jéssica, protagonistas do dissenso. Fernanda Capibaribe argumenta que Que horas ela volta? mobiliza, esteticamente, zonas de tensionamento que podem desarticular e rearticular as próprias elaborações do feminismo.

O número propõe, em seguida, um voo para outros continentes, abordando cinemas que, de formas completamente diversas aos procedimentos anteriores, também colocam em cena os dramas e transformações da família burguesa. Em “Ponto estratégico e serialismo em Von heute auf morgen (De hoje para amanhã, 1996)”, Pedro Aspahan nos introduz à ópera de Schoenberg tal como encenada pelos diretores Jean-Marie Straub e Danielle Huillet. A análise de Aspahan está interessada em mostrar como a obra incorpora um pensamento musical que instaura uma lógica serial neste cinema. O autor identifica, no filme de Straub-Huillet, uma atenção aos procedimentos formais que dialoga com expressões da composição musical, para, no contexto do pós-guerra, oferecer resistência às imagens da propaganda e da lógica expressiva dos totalitarismos. Produzem- se, assim, formas de apreensão do espaço e do tempo que ressaltam as fragmentações e lacunas, de algum modo afinando- se com a leitura benjaminiana da História.

No ensaio “O sentimento emancipado. Política de Milestones (Robert Kramer e John Douglas, 1975)”, Jordi Carmona Hurtado apresenta uma leitura do tema da comunidade política (a partir da elaboração de Aristóteles e Rancière) e estética (dialogando com Kant) no filme em questão, organizado em torno de personagens que compõem três gerações de uma família. O autor opta por se deter na caracterização da situação dos personagens que se veem diante do tempo “após a revolução”, mostrando com isso como o filme encerra uma figura original da revolução, que teria tomado a vida inteira, agora. De acordo com Hurtado, nesse “tempo do depois” construído em Milestones é preciso “militar de outro modo, segundo essa ideia da revolução que não seria uma série de incidentes isolados mas a vida inteira”.

Dialogando com as possibilidades de construção de uma comunidade no cinema, o artigo “Filme-feitiço: notas sobre humanos e não humanos em Jaguar” retoma esta etnoficção de Jean Rouch para pensar nas possibilidades de uma coabitação das imagens, que estabeleça uma relação entre espécies, entre humanos, bichos e espíritos. A análise de Nilmar Barcelos aponta para o filme como possibilidade de agenciamento de diferentes forças, ao mesmo tempo em que se abre para se deixar afetar por elas. Com esta reflexão, a dimensão política das imagens no espaço urbano ou doméstico – investigadas até aqui pelos artigos do dossiê – é complexificada pelos componentes do “cosmos”, que incluem outras instâncias dotadas de agência (para além dos sujeitos humanos).

Encerramos esse percurso diverso de artigos com uma retomada dos paradigmáticos cineastas Glauber e Godard. Em “Canibalismo fraterno: o projeto estético-ideológico de Glauber Rocha em seus escritos sobre Jean-Luc Godard”, Luiz Octavio Gracini Ancona articula os diálogos entre o pensamento cinematográfico desses dois grandes cineastas modernos, ressaltando como Glauber “instrumentalizou” as rupturas estéticas propostas por Godard e o cinema moderno europeu. Como nos lembra o autor, voltar aos escritos de Glauber Rocha ainda parece tarefa profícua para compreender e debater os rumos de uma descolonização do cinema brasileiro contemporâneo.