Revista Devires v.04 n.01 – Dossiê Godard

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Descrição

Sumário

Apresentação da edição – César Guimarães – p.06

Dossiê Godard
A resposta de Godard – Bernard Eisenschitz – p.12
História(s) do cinema: invenção da animação – Cyril Béghin – p.26
Godard, Glauber e o Vento do leste: alegoria de um (des)encontro – Mateus Araújo Silva – p.36
Viver o filme – Maurício Vasconcelos – p.64
O azul de dois mundos – Roberta Veiga – p.78
O prazer material de escrever – Entrevista com Alain Bergala, por Mário Alves Coutinho – p.84

Temática Livre
Como animais que morrem – Stella Senra – p.104
Entre o mar e o deserto: o olhar intruso – Denilson Lopes – p.122
Gestos dos mortos: Hitchcock, Greenaway e Brakhage – Alexandre Rodrigues da Costa – p.136
Normas de publicação – p.152

 

Apresentação

César Guimarães

Tal como anunciamos na edição passada, a Devires entra em uma nova fase, trazendo agora, além dos artigos de temática livre, um dossiê dedicado ora a um diretor, ora a um problema teórico-conceitual relevante para a linha editorial da revista. Com isso, queremos aprimorar a interlocução entre as múltiplas formas expressivas do cinema e o leque dos saberes das Humanidades. Temos também novos nomes em nosso Conselho Editorial, que vieram diversificar nosso vínculo com os programas de pós-graduação em Comunicação e em Antropologia.
Para este número, após uma jornada de debates entre alguns membros do Conselho, resolvemos começar com Jean-Luc Godard. Como sabemos, ao longo de sua vida e de sua filmografia, Godard manejou, de inúmeras formas e em diversas ocasiões, as forças de criação próprias do cinema. O termo dossiê, contudo, foi tomado em um sentido modesto: tratou-se menos de recolher um conjunto de textos críticos que se debruçam exaustivamente sobre a obra godardiana, pretendendo esgotá-la em sua totalidade, e mais de reunir leituras peculiares em torno de certos filmes seus, tentando elucidar a constelação de referências e afinidades inesperadas que eles criam entre as artes, a história e o pensamento.

Para abrir este novo número, escolhemos glosar, livremente, alguns temas abordados em Nossa música, os quais constituem, para nós, razões suficientes para crer no cinema e continuar com esta revista. Numa Saravejo babélica (sede dos Encontros Europeus do Livro), ainda marcada pelas feridas e traumas da guerra, o nosso mundo surge como o Purgatório pelo qual vagueiam escritores, filósofos, jornalistas, tradutores, estudantes e leitores. Diante do empobrecimento da experiência na época atual, eles se servem do pouco que têm para a travessia desse lugar de expiação. Mas, diferentemente da Divina Comédia, em vez daquela montanha que aponta para o alto (o que alimenta a esperança de alcançar o Paraíso), estamos em um espaço no qual a possibilidade de salvação parece ter desaparecido. Numa exposição sobre as relações entre o texto e a imagem, que Godard – em pessoa – oferece aos estudantes, deparamo- nos com dois pequenos cartazes, duas inscrições em letras brancas sobre um retângulo negro: “E a libertação?”; “E a vitória?” Surge então o rosto de Olga Brodsky (jovem estudante judia, de origem russa): pensativa, levemente inquieta, agitada pelo sofrimento. Aparecem mais dois novos cartazes, intercalados com o plano da moça: “Este será meu martírio”; e “Esta noite estarei no paraíso”. Logo após, a tradutora que acompanha a aula pergunta: “Monsieur Godard, será que as pequenas câmeras digitais poderão salvar o cinema?” O cineasta permanece em silêncio, envolvido pelo escuro (ele que dissera, pouco antes, que o princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para a nossa noite…).

Em História(s) do cinema, no último episódio (“Os signos entre nós”), Godard se espelha no homem que, no texto de Jorge Luis Borges, visitara o Paraíso em sonho e acordara com a flor que lá recebera (como uma prova). Em Nossa música, é em um pequeno jardim (tomado pelas cores intensas das flores) que o cineasta, por telefone, fica sabendo do que acontecera com Olga, morta pela polícia em uma sala de cinema em Jerusalém, quando simulara um atentado (na sua mochila, no lugar de bombas, havia apenas livros). Com o cineasta ela deixara o filme feito em Saravejo (com uma câmera digital), intitulado Nossa música, mas dele nada veremos… Se as imagens finais de História(s) do cinema, em batimentos rápidos, apresentam Godard com uma flor amarela na boca, em Nossa música o plano final traz o rosto de Olga, em um Paraíso cercado pelos fuzileiros navais norte-americanos, e do qual, ao contrário do texto de Borges, não há esperança de retorno. Não podemos ver o outro mundo para onde ela foi…

Judith Lerner, a jornalista israelense que entrevista o poeta palestino Mahmoud Darwich (que se quer porta-voz dos derrotados da guerra de Tróia), reconhece em Olga seu duplo, tal como vemos em um belíssimo plano: a imagem de Olga vem de longe, desfocada, aos poucos seu rosto torna- se nítido e ela aproxima-se cada vez mais, frontalmente, como se encontrasse o olhar de Judith (da qual só temos a voz) e com ela trocasse de lugar, passando depois a ser vista de costas, para logo se esmaecer novamente e se afastar, tornando-se outra vez um vulto informe. Essa passagem torna-se emblemática em um filme que aborda as duas faces da verdade sob o signo da relação campo/contracampo, ficção/documentário, imaginário/real, certeza/incerteza; filme dedicado sobretudo ao lugar do outro (o “muçulmano” dos campos de concentração, os palestinos, os índios norte-americanos, os vencidos da história), à maneira de Lévinas, que reivindica o abandono do Eu em favor da estrangeiridade sem defesa do rosto de Outrem. Para nós, essa passagem pode ser compreendida à luz do Talmude, tal como o lê Giorgio Agamben.

Para o Talmude, cada homem possui dois lugares, vizinhos, adjacentes, que o esperam: um no Éden, outro no Gehinnom (Inferno): “no momento em que cada um alcança o seu estado final e cumpre o seu próprio destino, acha-se, por essa mesma razão, no lugar do vizinho. O que cada criatura tem de mais próprio torna-se assim sua substituibilidade, o seu ser no lugar do outro”.1 Inspirado pelo arabista Massignon, Agamben interpreta essa possibilidade de ser substituído como um abandono da particularidade do indivíduo (coisa tão valorizada em nossas sociedades capitalistas) em favor da hospitalidade, do acolhimento ao outro, da criação de um espaço vazio – denominado agio pelos poetas provençais – e que designa o lugar próprio do amor. De certa forma não é nisso que se empenha Judith quando propõe ao embaixador francês (que salvou os avós e a mãe dela durante a II Guerra Mundial) uma conversação sobre o conflito israelense- palestino? Ela propõe: “Não podemos começar a partir daí? Pela terra, pela promessa, e em seguida, o perdão…”.
Com esse filme, Godard demonstra como o cinema pode fazer valer sua potência de criação frente aos poderes que o cerceiam nos dias de hoje e nos oferecer novas possibilidades de vida. Não é assim que ele ainda pode imaginar um outro mundo, mesmo em meio ao inferno das imagens? Podemos lembrar aqui daquela parábola sobre o reino messiânico que Benjamin ouviu de Scholem e repassou a Bloch: os chassidim contam que no outro mundo, no mundo por vir, tudo será precisamente como aqui: o quarto em que dormimos, as roupas que vestimos, tudo será como agora, só que um pouco diferente… Um pequeno deslocamento não no estado, mas no sentido das coisas – uma certa maneira de compor o plano, de enlaçar ou de contrapor texto e imagem, de pronunciar uma frase, de sustentar um gesto, de extrair fragmentos de um romance ou de um ensaio – e o mundo por vir já está entre nós, quase imperceptível.

César Guimarães

 

Notas:
*1. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 25.