Revista Devires v.04 n.02 – Dossiê Vestígios do real

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 4, n. 2, p. 1-176,
jul/dez 2007 – issn: 1679-8503

Sumário

Apresentação – César Guimarães e Roberta Veiga p.06

Dossiê: Vestígios do real
Algumas notas em torno da montagem Jean-Louis Comolli – p.12
Os signos do real no cinema de Eduardo Coutinho Fernando Andacht – p.42
Corpos exemplares: a reencenação no neo-realismo Ivone Margulies – p.62
Virtualidade e referência: um breve olhar sobre Ulisses Luiz Augusto Rezende Filho – p.82
Viagens na fronteira do Brasil e do cinema Andréa França – p.102
Tempo e dispositivo no documentário de Cao Guimarães Consuelo Lins – p.118

Fora-de-campo
Fotograma comentado – Olhem para ela: a primavera chegou Lucia Castello Branco – p.130
Entrevista – Eduardo Escorel e a montagem da história Oswaldo Teixeira e Pedro Aspahan – p.140
Leni Riefenstahl: O monumental como imagem da ruína Liliane Heynemann – p.160
Normas de publicação – p.176

Apresentação

Prosseguindo com a proposta editorial de oferecer, a cada vez, uma discussão dedicada à obra de um diretor ou a uma questão teórica, este número da Devires traz o dossiê Vestígios do real. No momento em que o campo audiovisual se expande, multiplicando seus formatos e recursos expressivos, o cinema se vê implicado em um conjunto de problemas que desafiam sua potência criadora e seu porvir. Se, por um lado, as vídeo- instalações, vídeo-performances e experimentos em web-arte exploram a potencialidade dos suportes, seus deslocamentos e seus contextos de acesso, por outro, o aprimoramento tecnológico acelera a produção de imagens e, associado à máquina capitalista, intensifica a disseminação das formas padronizadas da televisão, da publicidade e do marketing.

Porém, como tática de resistência às estratégias de espetacularização, alguns filmes recorrem a procedimentos que se contrapõem vivamente aos poderes da simulação e da imagem calculada, fazendo valer o mundo da experiência, da iniciação e da transmissão – numa palavra, aquilo que Jean-Louis Comolli nomeou inscrição verdadeira: presença indicial dos lugares (sociais e históricos), dos corpos, dos gestos e das vozes, apanhados no momento mesmo em que se constitui a relação entre quem filma e quem é filmado *1. Superadas as pressuposições ingênuas quanto ao objetivismo desse vestígio que o mundo deixa impresso nas imagens, bem como reavaliada criticamente a supervalorização que autores como Bazin e Barthes um dia concederam àqueles signos que emanam do referente, hoje podemos reafirmar – em nova chave – o quanto “a força do cinema vem do que ele inventa a partir da hipótese indicial e de seus problemas” (segundo os termos de Ismail Xavier *2).

Desde Moi, un noir (Jean Rouch, 1959) até Iracema (Jorge Bodanski e Orlando Senna, 1974), o registro documental e a encenação convivem no cinema moderno. Contudo, em alguns filmes contemporâneos desponta uma nova inflexão na combinação entre a presença e o artifício, o espontâneo e o construído. Surge daí uma série de questões. Como conceber essas novas relações entre documentário e ficção? De quais recursos se valem os filmes para se abrir à duração dos eventos (corriqueiros ou grandiosos, ordinários ou extraordinários)? Quais as outras maneiras de se explorar esse “rastro empírico do mundo” no filme (Ismail Xavier), para além do recurso da entrevista? Como é possível, no documentário, a coexistência de elementos de natureza plástica com outros de natureza indicial? Tais perguntas, lançadas em nossa última chamada para apresentação de artigos, foram acolhidas pelos autores e ganharam conformações particulares, conferindo à revista um desenho que, se não é coeso, é coerente.

Em “Algumas notas em torno da montagem”, Jean-Louis Comolli parte das operações e dos efeitos de sentido da montagem para diferenciar duas temporalidades que hoje marcam o cinema: a da escritura (ou da experiência) e a do espetáculo (ou do capital). Para além de um procedimento técnico, o jump cut surge como um modo de visibilidade próprio das formas do espetáculo (a tevê, os clipes, a publicidade). Ele é o procedimento pelo qual a ditadura do corte e do fragmento impõe a aceleração do olhar em detrimento da experiência da duração e da continuidade. A lógica do excesso de saltos e rupturas condena o espectador a se tornar um mero consumidor de efeitos visuais e sonoros, e o impede de vivenciar a ilusão que funda a relação mimética entre o cinema e o tempo vivido. No jump cut, a autonomia do tempo da inscrição, que ocorre na co-presença dos corpos e da câmera, é abandonada em favor do controle do cineasta sob o objeto filmado, que fica à sua disposição. Ao espectador é negada a liberdade “de entrar e durar no fragmento”, de “se interessar ou reter tal instante”, de encontrar “o outro como imprevisto”, pois foi privado da continuidade de onde a descontinuidade pode emergir. O tempo lento do mundo, o tempo do outro, lhe é roubado.

Preocupado com o anti-realismo extremado a que podem conduzir os argumentos que enfatizam, ceticamente, a impossibilidade do documentário captar o real, Fernando Andacht, em “Os signos do real no cinema de Eduardo Coutinho”, com base na semiótica peirceana, defende a insistência dos componentes indiciais e fácticos no gênero documentário. Criticando o dualismo que opõe as qualidades e os fatos à dimensão simbólica, o autor reivindica que, em Edifício Master, a haecceidade dos personagens, surgida do encontro entre quem filma e quem é filmado, não é nem apagada nem diluída pelos procedimentos ficcionais ou auto- reflexivos.

O artigo de Ivone Margulies, “Corpos exemplares: a reencenação no neo-realismo”, também toca na questão do indicial, mas pelo seu avesso. Ao caracterizar a reencenação neo-realista como um procedimento mimético realista que funciona tanto como método terapêutico quanto tentativa de reparação social, a autora mostra que, se o valor indexical do acontecimento que deu origem à reencenação foi colocado à distância, repetido e duplicado, ele retorna na singularidade do corpo e da fala daquele que atua, à maneira de um happening ou de uma performance. Assim é que filmes como Amor de mãe (Zavattini e Maselli) e Tentativas de suicídio (Antonioni), como fábulas de redenção, concebem, cada um à sua maneira, formas de retornar ao neo-realismo ou de ultrapassá-lo. Sobre o filme de Antonioni, feito em 1953, a autora dirá que ele chega a antecipar o método de pôr a verdade em cena, inventado pelo cinéma-verité.

Já em “Virtualidade e referência – um breve olhar sobre Ulisses, de Agnès Varda”, Luiz Augusto R. Filho desloca inteiramente o problema da referência no gênero documentário. A partir de Bergson e Deleuze, o autor dirige uma crítica à insuficiência da noção de representação, que, ao supor a existência de um objeto pré-existente (tomado como modelo a ser re-apresentado pelos signos), acaba por ignorar a dimensão virtual e problemática da realidade, concebida como um misto das circunstâncias imediatas e presentes (o real) e das virtualidades, daquilo que não está dado. A identificação da coalescência entre real e virtual faz da referência mais um efeito que incide sobre o espectador do que um traço intrínseco do documentário (sem negar, contudo, sua dimensão factual ou indicial primeira). Nesse sentido, o filme documentário seria menos uma representação que revela uma realidade do que um processo de criação que concede a um objeto virtual e complexo uma imagem atual, particular e circunstancial.

Os dois textos que encerram o dossiê possuem uma natureza mais analítica. Ao investigar filmes documentários brasileiros atuais, tais artigos descrevem a relação que o cinema tem mantido com outras formas de expressão, principalmente a fotografia, a video-arte e as instalações. Os artigos de Consuelo Lins (“O tempo e o dispositivo no documentário de Cao Guimarães”) e de Andréa França (“Viagens na fronteira do Brasil e do cinema”), discutem a convivência entre as formas cinematográficas de inscrição verdadeira, construções plásticas mais ousadas e intervenções videográficas, em um território no qual o cinema se mistura com outras práticas artísticas.

Os artigos de temática livre foram incluídos na seção “Fora- de-campo”, que se inicia com o Fotograma comentado, assinado por Lucia Castello Branco. Recorrendo à psicanálise e à literatura, a autora explica porque este plano – no qual a protagonista de Mônica e o desejo (Ingmar Bergman, 1952) encara diretamente a câmera, mas sem olhar para lugar algum – é o “o plano mais triste da história do cinema” (como escreveu Godard). Em seguida, apresentamos uma entrevista (realizada por Pedro Aspahan e Oswaldo Teixeira) com o diretor e montador Eduardo Escorel, que fala sobre os atos de pensamento próprios da montagem e sua experiência de ter montado alguns filmes dos diretores mais representativos da história do cinema brasileiro (Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Júlio Bressane, Eduardo Coutinho e outros). Escorel também fala do seu método de criação como diretor e discorre acerca das relações entre o cinema e a história.

No artigo que encerra esse número, “Leni Riefenstahl: o monumental como imagem da ruína”, Liliane Heynemann, com o apoio do documentário realizado por Ray Müller, Die Macht der Bilder: Leni Rienfenstahl (1993), descreve as operações fílmicas criadas pela cineasta em O triunfo da vontade (1935) e Olympia (1938). Escavando debaixo da estética do monumental que tanto fascinou as massas que apoiaram Hitler (que compartilhava com a burguesia o gosto pelo kitsch), a autora descobre outra massa (para a qual sempre faltarão imagens, mas não testemunhos): a dos milhares de mortos dos campos de concentração e de extermínio.
Por fim – não poderíamos deixar de dizer – esperamos que os leitores apreciem as modificações no projeto gráfico da revista.

César Guimarães Roberta Veiga

Notas:

*1. COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004.
*2. XAVIER, Ismail. Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro. Devires – Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 75.