Revista Devires v.05 n.02 – Dossiê Documentário Brasileiro Contemporâneo

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Description

devires, belo horizonte, v. 5, n. 2, p. 1-184, jul/dez 2008 – issn: 1679-8503

Sumário
Apresentação – César Guimarães – p.06

Dossiê: Documentário Brasileiro Contemporâneo
Beleza do Horizonte: Uma viagem ao Brasil em novembro de 2005 –
Jean-Louis Comolli – p.12
Inventar para sugerir: notas sobre Santo Forte, de Eduardo Coutinho –
Cládia Mesquita – p.32
Na contramão do confessional: o ensaísmo em Santiago, de João Moreira Salles, e Jogo de cena, de Eduardo Coutinho – Ilana Feldman – p.56
Jesus no mundo maravilha, uma carta aberta ao realizador Newton Cannito –
Cezar Migliorin – p.74
Carapiru-Andrea, Spinoza: a variação dos afestos em Serras da desordem – André Brasil – p.84
Cineastas indígenas e pensamento selvagem – Ruben Caixeta de Queiroz – p.98
Fotograma comentado – Os tempo de Santiago – Anna Karina Bartolomeu – p.126

Fora-de-campo
Robert Kramer: técnica, paixão e ideologia Jorge la Ferla – p.136
Documentário: problemas de mise en scène e o horror da guerra
– Cristian Borges – p.156
Os encontros interculturais inesperados nos cinemas brasileiro e quebequense
– Hudson Moura – p.172

Normas de publicação – p.184

 

Apresentação

César Guimarães

Os profetas das novas tecnologias, apressados em abolir nosso tempo (do qual se crêem apartados), já lançaram seu vaticínio: o cinema, essa antiga arte do índice, catador dos vestígios da experiência humana, não demorará a desaparecer de vez, substituído pelos artifícios da imagerie de síntese, com seus cenários e corpos virtuais, suas tramas interativas docilmente submetidas à vontade do espectador, agora dispensado de lidar com a perda, pois os acontecimentos – do júbilo à morte, do mistério ao gozo – passarão a ser reversíveis, “reinicializáveis”, experimentados sob o princípio do videogame: se perdemos, podemos jogar outra vez, e se – depois de longo esforço – zeramos o jogo, as novas versões, encomendadas pelo fabricante, já nos esperam.
O cinema, que por meio do encontro entre uma máquina e um corpo apanha a presença dos seres e dos eventos para projetá- los na ausência do que é filmado, não cumpriu inteiramente o destino da estética da desaparição. Outras máquinas farão isso por ele, levíssimas, imateriais, e de rigorosa astúcia programada. Em breve ele será tão velho quanto aquela lanterna que “à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da idade gótica, sobrepunha, à opacidade das paredes, impalpáveis criações, sobrenaturais aparições multicores, onde se pintavam legendas como num vitral vacilante e efêmero”. *1

Velhíssima tecnologia, aposentada pelas máquinas que dispensaram o real (e, com ele, os corpos e a medida humana do olhar, bem como os aparatos de registro e reprodução) para simulá-lo a partir do cálculo, Cerberus em prontidão contra o acaso e o risco. Essa múmia do movimento já se deteriorava, seus trapos mal escondiam a derrota na luta contra o tempo. Inútil insistir, pois, em salvar o ser pela aparência, celebrar essa passageira ressurreição na tela branca: melhor se valer dos simulacros, que conjuram toda angústia; eles, sim, levarão a cabo a desaparição. *2

Não se esperava mesmo muito dessa arte sem futuro: mal acaba de completar cem anos e uma interdição vem ameaçar a inscrição verdadeira, “selo da relação real de um tempo (aquele do registro), de um lugar (a cena), de um corpo (o ator) e de uma máquina (que assegura o registro)”. *3 A inscrição verdadeira é a célula documental de todo filme, mesmo o de ficção. Onde quer que haja uma duração partilhada entre um corpo e uma câmera que registra sua presença, há inscrição verdadeira (a verdade, aqui, está na relação entre quem filma e quem é filmado, e não no conteúdo da representação).

Em pleno avanço (melhor seria dizer ataque) da cena virtual sobre a inscrição verdadeira, nas arenas da sociedade do espetáculo (reforçada pelas estratégias do biopoder), eis que o cinema – tantas vezes dado como morto – ressurge em meio à floresta amazônica arrasada pela brutal e ilegal extração de madeira, na gleba de terra chamada Corumbiara, no sul de Rondônia. Mais uma vez (desde Lumière), o vento sopra onde quer (para lembrar o subtítulo do filme de Bresson, Um condenado à morte escapou), como nas palavras do Evangelho de São João. No documentário, é o vento do real que sopra em nossos ouvidos, e talvez somente ele, inesperado, fora de controle (ignora de onde vem e para onde vai – escreve o evangelista), seja capaz de inaugurar uma vida nova para o espectador nos dias de hoje. É isso o que Corumbiara, de Vincent Carelli, nos proporciona, surpreendentemente. Neste número que a Devires dedica ao documentário brasileiro contemporâneo, esse filme nos oferece, de maneira tristemente exemplar (mas sobretudo como ato de resistência), aquela cena primitiva que, nos termos de Comolli, funda o encontro filmado (grau zero do cinema documentário) – e por que não dizer? – a sua ontologia, enfim.

Em 1995, nove anos depois da primeira tentativa de apanhar as provas de um massacre de índios isolados, atribuído a fazendeiros da região de Corumbiara, o cineasta, o sertanista e seu novo assistente, agora acompanhados de dois jornalistas do jornal O Estado de São Paulo, retornam à cena do crime. Como uma diminuta mancha verde incrustada no cinza das queimadas e na terra de onde milhares de árvores foram arrancadas, o território dos índios, com sua rocinha, teimava em sobreviver.

De início, o campo nada apanha, eles não comparecem ao enquadramento que os aguarda, mas seus sons, seus passos no mato revelam que estão fora de campo, e que por um triz eles entrarão no campo, capturados, filmados pela primeira vez. Como saberemos mais tarde (pelo relato da índia Tiramantu), eles já nos olhavam – a nós, os brancos, assim como o cineasta, os sertanistas e os jornalistas –, eles nos observavam, fora do nosso campo. Um fora-de-campo mais radical, que ultrapassava em muito o visor da máquina e as nossas viseiras conceituais, já nos espreitava.

Lentamente, duas figuras entram no campo, dois índios, ainda indistintos (logo descobriremos que são dois irmãos, uma mulher, Tiramantu, e um homem, Purá). De início, sem saber o que fazer, a câmera faz um zoom in; insegura e presa ao seu lugar, ela “puxa” o desconhecido para perto, sem se mover; mas eles avançam, cautelosa e suavemente, e a câmera (assim como corpo que a sustenta), só pode esperar e refrear seu poder de intrusão. Os olhares dos brancos também esperam: eles sabem-se olhados, pois também ocupam o campo do outro, são também vistos – e perscrutados – pela primeira vez. Aos poucos, o olhar regulado pela câmera é obrigado a abandonar sua boa (e segura) distância e a ocupar o limiar que põe em contato os corpos.

Os dois índios se aproximam, e – quem toma a iniciativa do primeiro gesto? – as mãos se tocam. Aquele que filma é também tocado, estende a mão, deixa-se reconhecer pelo toque, e a partir daí surge um contato precário, sustentado pelos dedos que se mantêm unidos com delicadeza (impossível saber quando soltar, por quanto tempo mais segurar). Na breve e intensa cena do primeiro contato, o olhar que enquadra e captura contém o seu avanço no espaço do outro para acolher o convite que vem dele; aceita ser conduzido, o que causa uma pequena vertigem, um descentramento, as coisas se desenquadram momentaneamente, desequilibradas, fora de foco. Como numa dança sem ensaio, Tiramantu e Purá conduzem a equipe para o centro da pequena aldeia. É nessa região onde a mata se encontra acuada pela ferocidade da expansão capitalista que o documentário (e com ele todo o cinema!) reinaugura sua cena primitiva, atualizada pelos dilemas e impasses da sociedade na qual vivemos.
Essa seqüência de Corumbiara exibe emblematicamente o terreno atual no qual se desenvolve o gesto documentário, aberto tanto a confrontos quanto a alianças. Em nossa época, ele não pode se contentar simplesmente em concorrer com as máquinas de visão que se apressam em produzir a inscrição da realidade, sôfregas em nos oferecer um grão de real que seja. O documentário deve ir além e tornar manifesta, na matéria fílmica, a realidade da inscrição, como tem insistido Comolli.

Se o documentário possui uma forma mutante, pois sua mise en scène é atravessada pelas outras mises en scène criadas pelas instituições da vida social, a teorização e a crítica que podemos desenvolver em torno da sua escritura devem também se manter atentas à multiplicidade dos atos de criação que as obras sustentam. Este é o espírito que guia os textos aqui reunidos. Consagrados a filmes de estilísticas bem distintas, os artigos percorrem as diferentes modalidades assumidas pelo encontro filmado, desde o seu grau zero (modulado pela escuta atenta ou pela violência provocadora) até a sua teatralização, passando pelos procedimentos do ensaio. Cremos que, com isso, conseguimos oferecer um panorama das linhas de força que animam parte significativa da recente produção documentária brasileira.

Notas:

1. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 10.
*2. BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal/ Embrafilme, 1983, p. 121-128.
*3. COMOLLI Jean-Louis. Viagem documentária aos redutores
de cabeça, p. 143. Para poupar a repetição das referências, adiantemos que todas as nossas remissões às noções desenvolvidas por Comolli foram extraídas desse artigo e de um outro, “Sob o risco do real”, publicados na edição brasileira de Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.